sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

A duras penas: estratégias, conquistas e desafios da enfermagem em escala mundial


CASTRO SANTOS, Luiz A. A duras penas: estratégias, conquistas e desafios da enfermagem em escala mundial. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.15, n.1, p.13-28, jan.-mar. 2008.

Discutem-se os rumos e transformações da enfermagem como profissão, em escala mundial, desde as últimas décadas do século XIX. Num cenário de intenso intercâmbio de ideias e práticas entre as lideranças do movimento, que desconheciam fronteiras nacionais e conformavam espaços de associação e interação
verdadeiramente transacionais – como o Conselho Internacional de Enfermagem –, a literatura insiste na
hegemonia de ‘modelos nacionais’ diferenciados, prontos para exportação. As ideias que predominavam entre as novas lideranças eram, na verdade, um amálgama de diferentes tradições. O modo como se propagaram variou de país para país, diante das tradições culturais e das estruturas sociais vigentes. No Brasil, não se pode falar de uma ‘alternativa francesa’ aos rumos da enfermagem, liderados pela Escola Anna Nery, sem que se desfigurasse ou comprometesse o processo de profissionalização então em curso. O processo lento, descontínuo e frequentemente contraditório, de expansão da enfermagem em todo o mundo, constitui o tema do presente artigo.



A enfermagem emergiu lentamente como um campo profissional desde o início do século XX. Ou até mesmo antes, afirmariam historiadores que, no passado, sublinharam o legado de Florence Nightingale (1820-1910) como um verdadeiro rito de iniciação para o surgimento da profissão em escala mundial. De fato, sua influência pessoal e a força de seu carisma foram indiscutíveis, com impacto duradouro em muitas regiões da Europa ocidental. Entretanto os ingredientes básicos do profissionalismo receberam o impulso mais forte não
tanto da “lady mítica e sua lâmpada” – até os dias de hoje, um ícone das mudanças da enfermagem no cenário mundial – mas, sobretudo, das frequentes relações e associações entre propagadoras dos novos preceitos e das práticas do cuidar, que, na passagem do velho ao novo mundo, transformavam-se e adaptavam-se aos novos cenários, desafiando, mas também incorporando, antigas crenças e rotinas na assistência ao enfermo. Inúmeras enfermeiras – lideranças como Ethel Bedford Fenwick na Inglaterra, Anna-Emilie Hamilton na França, Mary Adelaide Nutting e Lavinia L. Dock na América do Norte, para citar algumas das mais entusiastas – imbuíram suas seguidoras com um sentido de missão e de busca da identidade. Foram elas, entre outras, as inspiradoras dos movimentos associativos mais fortes, que talharam os caminhos da ascensão profissional. Ao findar o século XX e nas primeiras décadas seguintes, conferências e encontros nacionais e internacionais foram o desaguadouro ou a alavanca de movimentos e
associações de grande amplitude, que promoveram o intercâmbio entre enfermeiras movidas por ideais profissionais e feministas em vários cantos do mundo.
Há pontos de vista discordantes na literatura. Sustenta-se, por exemplo, que muito antes de Nightingale a enfermagem já se tornara um exercício profissional. O caso da Inglaterra seria o mais revelador, por sugerir a existência de categorias numerosas de cuidadores e cuidadoras desde muito cedo no século XX, como as atendentes particulares para enfermos de famílias mais abastadas e os auxiliares (quase sempre homens) de médicos em hospitais, que ajudavam com curativos, sangrias e banhos, no preparo e administração de poções, na aplicação de ventosas etc. Um texto que pode gerar interpretações nessa direção é o de Dingwall, Rafferty e Webster (1988).2 No entanto esses mesmos autores levantam as pistas para uma visão contrária, ao indicarem que as atendentes, ou private duty nurses, ocupavam um espaço bastante marginal
nos lares ingleses, ao passo que os auxiliares nos hospitais dedicavam-se apenas a tarefas rotineiras (p.14-18). Nos hospitais, como nos espaços privados, “havia muito pouco conteúdo técnico” (p.18) nas atividades exercidas pelos cuidadores, em geral provenientes das classes populares, sem acesso aos bens da cultura. 
Deve-se ressaltar que os centros de treinamento na Europa sediados em hospitais não eram ainda emblemas de profissionalismo, pois lhes faltavam um corpo sistematizado de conhecimentos, bem como rituais e redes de interação (Collins, 2004) que pudessem firmar os novos papéis e um espaço institucional autónomo  Tais características puderam selar o esprit de corps de enfermeiras diplomadas só mais tarde, já em fins do século XIX e início do século XX. Em 1860 a Escola de Formação de Miss Nightingale, a primeira instituição educacional de alguma expressão na Europa no campo da enfermagem, adotou um modelo de inspiração hospitalar do qual as instituições norte-americanas cedo se distanciaram, dando destaque ao
trabalho de visitação. Como acentua a historiadora britânica Célia Davies (1983), editora do periódico Rewriting Nursing History: “Nigthingale imaginava a enfermeira como a supervisora do hospital; as líderes norte-americanas tendiam sempre a pensar no trabalho individual na comunidade” (p.53-54). Essas circunstâncias levaram a novas formas de apoio à enfermeira diplomada que atuava isoladamente, e os serviços de visitação e de saúde pública começaram a expandir-se para outros países. Sem dúvida aqui se fez presente o esforço internacional para mitigar o sofrimento dos soldados nos campos de batalha, que conduziu à organização do Comité Internacional da Cruz Vermelha em 1863, formado por inúmeras unidades nacionais na Europa e no Japão. Dali partiam os sinais para que o papel da entidade se estendesse além das tropas e casernas. O historiador John F. Hutchinson (1995, p.17-21) recorda as palavras do
líder da saúde pública alemã, Rudolf Virchow, em Berlim, por ocasião da Conferência do Comité Internacional da Cruz Vermelha, em 1869: em sua opinião, a entidade devia preocupar-se com o sofrimento das populações em tempos de paz, não apenas durante as guerras. Esses tempos de preocupação com a saúde das populações estimularam as primeiras manifestações de agitação profissional nas lides hospitalares, onde predominavam ex-alunas de escolas ‘nightingalianas’. Um forte sinal de resistência ao poder médico entre as ‘cuidadoras’ – já em absoluta superioridade numérica em relação ao trabalho masculino – foi a criação da Associação Britânica de Enfermeiras, em 1887, sob a inspiração de Ethel Bedford Fenwick,
enfrentando a oposição da Associação dos Hospitais e de Florence Nightingale (Davies, 1983, p.55). Florence pregava a necessidade de ‘vocação’ entre as jovens candidatas – uma dimensão do profissionalismo que ultrapassou o Atlântico Norte e Sul, chegou à Austrália colonial, no Pacífico, e alcançou a Coreia e o Japão no início do século XX (Godden, Helmstadter, 2004; Takahashi, 2002). Judith Godden e Carol Helmstadter (2004) levantam um ponto polêmico, ao sustentarem que “o conceito de missão ... substituiu o conceito igualmente importante do treinamento profissional” (p.157). Mas, fossem ou não ‘missionárias’, reconhecem as autoras que os conhecimentos clínicos das enfermeiras foram bastante eficazes “nos hospitais recentemente medicalizados” (p.164), e as supervisoras ‘nightingalianas’ em tantas partes do mundo – como foi o caso da Lady Superintendent Lucy Osburn, no Hospital de Sydney, desde 1868 – “representaram um desafio importante à estrutura patriarcal dos hospitais” (p.166). Como se vê, foi também no espaço hospitalar, e não apenas no trabalho de saúde pública, que se revelava a inquietação produzida pela dominação profissional e de género. A nosso ver, o ethos profissional de “maternidade, envolvimento religioso, repressão e influência moral” (p.164) nunca foi tão predominante. E mesmo que assim fosse é preciso que seu papel histórico seja reavaliado: em vez de se chocar com a dimensão profissional, na verdade pôde, em muitos casos, representar um substrato emocional poderoso para a conquista de um ‘nós’ coletivo, condição indispensável para a busca de posições de autonomia.
Indubitavelmente foi hospitalar o modelo inicial que cruzou os mares a partir da Inglaterra, inspirado em Florence. Durante a década de 1890 a supremacia desse modelo sofreu um primeiro revés do outro lado do Atlântico, na Universidade Johns Hopkins. Foi ali, em Baltimore, que se instalou o primeiro centro universitário de formação de enfermeiras (Williamson, 2000). Desde o ano de 1890 esse espaço precioso para as jovens estudantes permitiu-lhes deixar o ‘claustro’ dos hospitais e experimentar a atmosfera mais democrática de um campus. Essas mudanças se deram, em boa medida, com a colaboração de Ethel Bedford Fenwick, responsável por ter influenciado as lideranças de Johns Hopkins, Adelaide Nutting e Lavinia Dock, por ocasião de um congresso sobre serviço social e filantropia, ocorrido em Chicago, em 1893.3 Dessa conferência brotaram as sementes de duas entidades de interesse coletivo, a Liga Nacional
do Ensino da Enfermagem e a Associação Americana de Enfermagem (Davies, 1983, p.50). Foi ali também que se firmaram os laços de amizade e solidariedade profissional entre várias lideranças, rumo a uma irmandade (uma sisterhood) duradoura. Em uma outra conferência, dessa feita do Conselho Internacional de Mulheres, em 1899, Fenwick agitou outra bandeira preconizando a criação do Conselho Internacional de Enfermeiras, naquele mesmo ano. Assim somava-se a influência do International Council of Nurses (ICN) à atuação daquelas primeiras associações norte-americanas – ‘nacionais até certo ponto, pois se tornaram elementos-chaves na circulação de atores e idéias entre muitos países. Foi o caso das repercussões que se fizeram sentir na França, onde a enfermeira Anna Hamilton, já formada em medicina em Montpellier,
em 1900, engajou-se no papel desprestigiado de promoção da enfermagem em seu país. Construiu sua carreira em duros embates com outros segmentos da profissão, particularmente com religiosas, mantendo sempre “uma correspondência regular com líderes da enfermagem nos Estados Unidos e na Inglaterra” (Schultheiss, 2001, p.86).
Mas a virada nas concepções sobre a enfermagem profissional deu-se, sobretudo, por força de fatores políticos, mais do que pelos apelos eloqüentes de defensores da saúde pública ou das primeiras lideranças das enfermeiras. Woodrow Wilson, presidente dos Estados Unidos entre 1913 e 1921, foi quem concebeu o projeto para uma Liga das Nações – “a quintessência da visão do ‘progressivismo’”4 (Wiebe, 1965, p.216, 273, 279) e favoreceu a proposta feita por sanitaristas, de colocar as organizações da Cruz Vermelha sob uma única agência, associada à Liga das Nações (Hutchinson, 1995, p.23). “Wilson e seus assessores – escreve Hutchinson – estavam à procura de alguma demonstração prática e imediata, de que o ‘espírito internacional’ que haviam invocado [na Conferência de Paris] não era simplesmente uma invenção de sua imaginação” (p.23). Muitos críticos apontaram para a suposta fragilidade do Comitê Internacional da Cruz Vermelha e para a necessidade de uma agência mais ativa de cooperação entre os países membros. Em Cannes, em abril de 1919, uma conferência dos membros do Comité reuniu médicos e representantes de entidades filantrópicas. Uma sessão especial foi dedicada às enfermeiras. Ao final, suas propostas
específicas para o campo se somaram às resoluções sobre saúde pública (p.25). Dali se firmaram as bases para a criação de uma Liga das Sociedades da Cruz Vermelha e para uma linha programática específica, a Divisão de Saúde Pública.
A historiadora Anne Marie Rafferty (1995) discute as rivalidades que permearam – e impeliram! – a cooperação internacional no setor da saúde, e mostra como a nova Liga se envolveu em escaramuças políticas e administrativas com entidades de carácter filantrópico como a Fundação Rockefeller, quando procuravam semear o campo fértil da enfermagem, particularmente da saúde pública, nos anos seguintes ao fim da Primeira Guerra. A Rockefeller, alvo principal dos ataques da Liga, patrocinou a enfermagem de saúde pública e escolas de enfermagem nos Estados Unidos, na Europa e na América Latina desde a década de 1920, a exemplo das escolas na Universidade de Yale e no Rio de Janeiro (Anna Nery), e apoiou de forma decisiva a criação de associações nacionais de enfermagem como a Associação Brasileira
de Enfermagem (ABEn), em 1926, além de abrir e operar postos de higiene e centros de saúde em diversas partes do mundo (Rafferty, 1995; Castro Santos, Faria, jul.-dez. 2004; Faria, jul.- dez. 2006). Mas as rivalidades e escaramuças na verdade soaram como música para as novas lideranças da enfermagem mundial, que tomava corpo e identidade próprios e necessitava, nessa medida, do estímulo político de conflitos e alianças.
O Conselho Internacional de Enfermeiras (ICN), apesar de criado na virada do século XX, durante quase vinte anos não passou de um ‘clube fechado’ de profissionais inglesas, norteamericanas e alemãs (Takahashi, 2002, p.103). Entretanto no período entre-guerras as contendas políticas a que aludimos, entre a Liga das Sociedades da Cruz Vermelha, outras agências voluntárias e a Fundação Rockefeller, provocaram o intercâmbio e o debate entre lideranças profissionais e suas propostas de ação, estimulando e ‘carregando as baterias’ do associativismo nos cenários nacionais e no plano internacional. Um ICN revigorado brotava desse novo cenário. Se tivéssemos de nomear um ‘tipo ideal’ de conexões e intercâmbios transnacionais no campo da enfermagem, naquelas primeiras décadas do século XX, o ICN seria a melhor escolha. A interação e a troca de experiências se estreitavam durante os congressos em vários países europeus e americanos naquele período conturbado e refletiam, a seu tempo, a circulação
de idéias e indivíduos, estimulada até mesmo pela preparação dos inúmeros eventos. A agenda e a temática eram muito diversificadas, pois resultavam também de outros cenários congéneres, tais como os encontros da Liga das Sociedades da Cruz Vermelha, o Conselho Internacional de Mulheres (Ethel Bedford Fenwick, a figura inspiradora do ICN, também era muito atuante no International Council of Women) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), criada em 1919 pelo tratado de paz selado após o conflito mundial (Takahashi, 2002; Rafferty, 1995).
Anne Marie Rafferty (1995) descreve as conexões entre a OIT e o Conselho Internacional de Enfermeiras, encetadas por lideranças do porte de Ethel Fenwick: “Inspirando-se na linguagem do movimento operário internacional, Mrs. Fenwick insistia que, ‘se a aspiração do poeta por uma confraternidade for um dia realizado, então a irmandade entre as enfermeiras será com certeza uma ideia internacional’” (p.276). Se os aspectos feministas e socialistas do movimento, sublinhados pela literatura, estavam presentes nos encontros do ICN (Takahashi, 2002), as dimensões ainda mais amplas da cidadania e dos direitos universais, contempladas pelos membros da OIT, poderiam agora compor o novo ideário (Rafferty, 1995, p.277). Rafferty levanta um ponto polémico: estaríamos assistindo a uma incursão da dominação profissional
norte-americana, como uma espécie de “subtexto da internacionalização” do mundo da enfermagem? (p.277). A nosso ver, uma outra leitura do processo crescente de internacionalização seria possível, como o momento de supressão da hegemonia ‘inglesa’ ou de qualquer outro ‘modelo’ – na verdade, a própria superação de modelos supostamente ‘nacionais’. Mas o que estava em jogo, no fundo, eram os conteúdos políticos, ou a política de profissionalização no interior do ICN, que apontava na direção de uma crescente autonomia, de uma vida associativa mais vigorosa e de fortalecimento dos valores anti patriarcais entre as
enfermeiras no Ocidente. Por esse prisma, pouco importa se o ‘papel hegemónico’ era desfrutado por inglesas ou norte-americanas. De qualquer modo, quaisquer que tenham sido os efetivos avanços da profissão sob os auspícios do Conselho Internacional de Enfermeiras e da crescente participação em seus encontros periódicos, não há como desconsiderar a nota dissonante do cenário asiático (Takahashi, 2002), no qual se revelava um quadro ainda desalentador quanto às perspectivas de fortalecimento profissional.
Do ponto de vista dos efeitos do novo ideário e das práticas do profissionalismo sobre o campo epidemiológico, ainda que algumas enfermidades como malária, tracoma e tuberculose fossem um fardo comum a sociedades do Ocidente e do Oriente (Castro Santos, Faria, jul.-dez. 2004; Healey, 2006; Murard, Zylberman, avr.-juin. 1987; Rafferty, 1995, p.269; Takahashi, 2002), as respostas institucionais diante das epidemias, bem como as políticas educacionais para enfrentar as necessidades de recursos humanos e profissionais variavam imensamente de país para país. A Junta Internacional de Saúde, da Fundação Rockefeller, financiou e supervisionou campanhas maciças contra a tuberculose e a malária e também financiou e supervisionou programas de ensino de enfermagem na Europa oriental e ocidental.5 Contra esse pano de fundo da cooperação estrangeira, desenharam-se situações nacionais bastante
variadas, cuja diversidade não deveria surpreender o observador. Ocorre que o ambiente profissional, cultural e político – especialmente o grau de intervenção do Estado – modelava os contornos dos padrões do ensino e do trabalho profissional em cada país ou região. No caso da França, eclodiram mais rupturas e dissensões entre as lideranças profissionais francesas, em torno de suas respectivas propostas pedagógicas, do que a circulação internacional de idéias reformistas faria supor. A historiadora Katrin Schultheiss (2001) discute esse tópico cuidadosamente, ao retratar a reformadora Anna Hamilton como a pioneira dos programas de treinamento em Bordeaux, que buscavam formar “enfermeiras de carreira, altamente treinadas” e colidiam com o modelo tradicional das religiosas, dominante em Lyon e Paris (p.5, 7). Como
já foi dito, as conferências do Conselho Internacional de Enfermeiras, ainda na primeira década do século XX, marcaram o início do intercâmbio entre líderes europeias e norte-americanas. Na França, Anna Hamilton foi uma participante destacada desses eventos. Rejeitando a suposição bastante corrente de que as propostas estrangeiras “não vingariam na França católica”, argumenta Schultheiss, o élan reformista em Bordeaux “inspirou-se livremente nas experiências de reforma no exterior” (p.87). Para Bordeaux foram contratadas supervisoras treinadas fora do país, que interagiam regularmente com a comunidade internacional, “num esforço para estabelecer uma clara identidade profissional para a ‘nova enfermeira’” (p.87). Nas palavras do historiador Pierre-Yves Saunier (comunicação pessoal, 13 nov. 2006), “cada subgrupo francês possuía seus patrocinadores e referências estrangeiros, que eram conduzidos à competição
nacional para criar a nova enfermeira francesa” (grifo do original; tradução livre).6 A experiência francesa deveria soar como uma palavra de cautela para estudos que insistam em recuperar ou construir, retrospectivamente, ‘modelos nacionais’ de ensino da enfermagem, naquela época de intensa efervescência ideológica e amplo debate sobre doutrinas e práticas.
Na verdade, modelos puros nunca se firmaram durante a história da profissão. O cruzamento de ideias que se acelerou desde os anos de 18907 torna insustentável a rotulação de ‘sistemas nacionais’ de ensino e de serviços assistências de enfermagem (o ‘modelo francês’ e o ‘modelo inglês’, entre outros). Se o que se consolidou ao longo do tempo foram sistemas bastante híbridos – como o que se tem denominado em nossos dias de ‘anglo-americano’ –, essas dualidades e cruzamentos convidam a que pensemos antes em ‘propostas’ ou ‘vertentes’, do que em ‘sistemas’ ou ‘modelos’.


Por outro lado, a recusa à noção de modelos ‘nacionais’ de enfermagem não pressupõe a ilusão de um internacionalismo ‘sem fronteiras’ ou algo nessa linha. Nunca houve, por exemplo, um internacionalismo proletário, dotado de certa coesão ideológica, como não houve, a rigor, um internacionalismo feminista organizado. Não é isso que está em jogo nesta discussão. O que se sustenta é que o vasto cenário das reformas que se descortinavam diante das participantes dos encontros do ICN refletia fluxos ‘ transacionais’ de ideias e práticas que se difundiam com rapidez. Os temas da educação e da profissionalização de enfermeiras colocavam em xeque o drama da mulher ‘fora de lugar’ na vida política, social e económica em todos os cantos do mundo. Mas esse amplo painel que a todas afetava não nos deve levar a negligenciar os acontecimentos nacionais que deram ao ICN seu vigor inicial. A historiadora Susan Armeny (1983) pondera que os bastidores da ação coletiva construída pelas enfermeiras das nações mais industrializadas, em princípios do século XX, revelavam um complexo de atitudes derivado de um ‘ideal sanitário’ nos Estados Unidos. Esse fundamento ideológico ou doutrinário brotou dos trabalhos da Comissão Sanitária da Guerra Civil, mais propriamente das atividades junto à Comissão de um grupo de enfermeiras e mulheres ligadas
à filantropia norte-americana (p.15, 33). Lavinia Dock foi um nome fundamental para a maturação política daqueles ideais de reforma sanitária. Mas não é fácil associar os germes da ‘questão sanitária’ a um único contexto histórico. As condições miseráveis da população trabalhadora, na Inglaterra vitoriana, levavam críticos como Engels e escritores como Dickens a se horrorizarem e se indignarem diante dos efeitos perversos da industrialização, e faziam brotar a percepção de um problema social e sanitário a que muitos chamavam “the sanitary idea”, a ideia de saneamento (Joshi, s.d.). Por certo havia um espírito manifesto de crítica social nos países que se industrializavam, influenciando as profissões emergentes. A ‘plataforma
de ação’ montada por Dock e companheiras jamais teria êxito, nos Estados Unidos ou em outra parte, sem a circulação, reprodução e agitação de suas ideias no plano internacional.
Este era, a bem dizer, o proscênio da luta. Lavinia Dock, como membro da agremiação feminista norte-americana (National Women’s Party) e secretária do ICN, costurou uma vasta rede de interação e debate fora dos Estados Unidos, unindo esforços à companheira inglesa Ethel Bedford Fenwick. Para ambas, as questões políticas da Enfermagem e da Mulher – com maiúsculas – “eram indissociáveis” (Williamson, 2000, p.V) e exigiam uma ação política conjunta que as contemplasse simultaneamente. No front interno, Dock agitava a bandeira dos direitos da mulher, enquanto sua companheira em Johns Hopkins, Adelaide Nutting, confrontava os desafios das posições hierárquicas inferiores nos hospitais militares ou nas ações de campanha. O teatro das ações coletivas necessitava da efervescência internacional para firmar-se.
A eclosão da Primeira Guerra Mundial provocou a aproximação das sufragistas da Europa e dos Estados Unidos com as lideranças da enfermagem, em torno das demandas pela elevação de postos na hierarquia militar (Armeny, 2003, p.17, 29). Entretanto o que parecia, na época, um ganho para as novas profissionais teve resultados dúbios no longo prazo, como indica Aya Takahashi (2002) para o Japão, onde as carreiras militares foram um elemento controverso no processo de profissionalização das enfermeiras. Susan Armeny (2003) sugere que a compatibilidade entre a vida militar e as qualidades de disciplina poderia promover os esquemas de administração taylorista nos hospitais. Como se sabe, a ideologia de eficiência difundida
pelo taylorismo afetou profundamente as atividades industriais no capitalismo fordista norte-americano, bem como os padrões burocrático-industriais preconizados por Lênin na União Soviética. Ainda que sua difusão fosse rápida, infiltrando-se nos modelos do comunismo soviético e do capitalismo mais ‘avançado’, é difícil imaginar sua penetração completa na área da saúde – mesmo no campo hospitalar –, onde os processos da saúde-doença tornam mais complexa e indeterminada sua adoção. Ainda assim, diz Armeny, “nos anos de 1920 e 1930 as enfermeiras-líderes desenvolveram, de fato, um interesse na abordagem da eficiência pela
administração científica” (p.45), com vistas à racionalização do trabalho hospitalar. No entanto, uma barreira contra o foco excessivo na ‘eficiência’ foi levantada por assim dizer dentro de suas próprias casas, pelas associações profissionais que congregavam as visitadoras, tal como, nos Estados Unidos, pela Organização Nacional da Enfermagem de Saúde Pública, que em 1922 já completava uma década de existência e atuação. O Relatório Goldmark, comissionado pela Fundação Rockefeller em 1919 e publicado em 1923, ao realizar um balanço da enfermagem nos Estados Unidos, na verdade expôs os problemas do desempenho da atividade para as novas profissionais (padrões de qualidade e técnicas, entre outros), sem cair em propostas de quantificação ou metas de ‘produtividade’. Quando o relatório se reportava, por exemplo, ao “tempo desperdiçado” no ensino das estudantes, não se tratava, como se poderia supor, de uma proposta ‘taylorista’, mas de uma crítica ao desrespeito e descaso para com as noviças, forçadas frequentemente a tarefas servis, totalmente estranhas a um currículo profissional (Goldmark, 1923, p.342-366. esp. 347; Silva Junior, 2003).
Se o tema do ‘desempenho’ forçosamente se colocaria no século XX para a enfermagem como para qualquer outra atividade profissional – a rigor, um tema clássico de discussão para a sociologia das profissões, de modo muito amplo –, algumas trilhas eram percorridas unicamente pelas áreas aplicadas do saber médico. Na década de 1920 expandiam-se vigorosamente a medicina preventiva e a enfermagem de saúde pública, ampliando a área de atuação para os países subdesenvolvidos, particularmente para a América Latina, cujos governos levantavam a bandeira da ‘saúde rural’ e dos serviços de assistência comunitária em programas como os de prevenção e luta contra a ancilostomíase e outras endemias dos campos. Esses foram os tempos das parcerias entre políticas estatais na área da saúde e a cooperação internacional da Fundação Rockefeller, particularmente nas décadas de 1920 e 1930 (Castro Santos, 1987, 2004; Birn, 1993; Vessuri, set.-dez. 2001; Palmer, 2004), quando as populações rurais, que compunham a imensa maioria em todos os países do continente, viram-se envolvidas em campanhas sanitárias vincadas em
projetos de construção nacional e ampliação dos aparelhos de Estado. Foi esse o contexto da notável expansão da enfermagem de saúde pública, não somente na América Latina mas em outras partes do Ocidente e no Oriente. Antes da Segunda Guerra, esses avanços resultaram, em boa parte, da atuação da Fundação Rockefeller e da atenção dada por agências supranacionais (sobretudo a Liga das Nações) aos conceitos de medicina preventiva e saúde coletiva. Um ponto dos mais controversos diz respeito à enfermagem psiquiátrica, em relação à qual os acontecimentos no Brasil naquela época talvez espelhem o quadro latino-americano e, até certo ponto, o panorama dos países centrais. Alguns estudos sugerem a inexistência de interesse pela enfermagem psiquiátrica nos primeiros anos da Escola Anna Nery, no então
Distrito Federal. Quando havia algum interesse, este se voltava para uma postura disciplinar por parte da enfermagem, de administração de medicamentos para a contenção dos institucionalizados (Barros, Lucchese, set.-dez. 2006, p.341). Todavia não se pode ignorar que havia, desde a década de 1920, uma contracorrente de esforços e iniciativas voltados para uma concepção comunitária e preventiva que apontava (por certo timidamente) para o que hoje se chamaria uma ‘concepção crítica em enfermagem de saúde mental’, defendida por lideranças latino-americanas (Malvárez, Heredia, 2005). A ‘higiene mental’, particularmente no período da Missão Parsons na Escola Anna Nery, se distinguia da psiquiatria centrada na instituição hospitalar e fincava raízes nos programas de ‘desenvolvimento de comunidades’, postulados
pela sociologia dos guetos e das minorias nas grandes metrópoles norte-americanas. A sociologia militante de um Louis Wirth, em Chicago, denotava tais preocupações e transpunha o terreno acadêmico para influenciar diretamente uma postura comunitária por parte do serviço social e da enfermagem.12 No Brasil, foi no Instituto Oswaldo Cruz, em Manguinhos, que essas noções receberam atenção especial, como atestam os Cursos de Saúde Pública ministrados desde 1940 para médicos que se transmudavam em ‘higienistas’ do Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp) – com estreitos vínculos com a enfermagem – e dos serviços sanitários federais e estaduais. Entre os cursos ministrados em Manguinhos, havia o de higiene mental, a cargo dos professores Adauto Botelho e Heitor Peres. Essa visão mais aberta era defendida pelo
Departamento Nacional de Saúde nos cursos para enfermeiras promovidos em 16 estados, entre os anos de 1939 e 1943, que diplomaram cerca de setecentas visitadoras sanitárias para os serviços públicos (Castro Santos, Faria, 2006, p.305, 319). Em que pese o avanço, na mesma época, das tecnologias médicas hospitalares e do modelo biomédica, a enfermagem nos centros mais avançados da América Latina, como em São Paulo, fazia da ‘atenção psicossocial’ uma ferramenta contra a ‘psiquiatria dos eletro choques’. O depoimento da enfermeira Clarice Ferrarini, que ocupou durante décadas uma posição de liderança no Hospital das Clínicas de São Paulo, é contundente: Quando a clínica psiquiátrica começou a funcionar [no Hospital das Clinicas], em 1954, nós havíamos acabado de chegar dos Estados Unidos. Passamos uma temporada daquele ano no Teachers College da Universidade Columbia e estávamos bem atualizadas. Questionávamos muito o professor da clínica, de quem não me recordo o nome, porque a ideia de psiquiatria dele era o doente ficar amarrado, dentro do quarto ... Eu então questionava, porque ... tinha adquirido conhecimentos recentes de psicologia sobre o tratamento do paciente... (citado em Sanna, set.-dez. 2003, p.1062)
As questões históricas da enfermagem psiquiátrica exigem muita pesquisa documental e coleta exaustiva de depoimentos, mas não será incorreto sugerir a relação entre a crítica das enfermeiras aos tratamentos antigos do ‘louco’, em São Paulo, e a abordagem psicossocial e situacional que algumas lideranças da profissão recebiam em centros de formação no exterior, como a Universidade Columbia, em Nova York, e a Escola de Enfermagem de Toronto. Por vias tortas, uma dialética fortuita permitia a ‘contaminação’ da formação biomédica por conhecimentos advindos das ciências humanas. A medicina preventiva e os modelos de atenção à saúde comunitária que se difundiam de modo errático em todo o mundo, na verdade disputavam uma luta de Sísifo, pois se tratava de um embate desigual, que o avanço dos conglomerados médico-hospitalares acabaria por tornar inglório e extenuante. Após a Segunda Guerra Mundial, as tentativas de entidades inter-governamentais como a Organização Mundial da Saúde (OMS), de promover a enfermagem profissional na África e na Ásia tiveram de enfrentar não somente obstáculos organizacionais e culturais – discutidos mais adiante - mas, antes de tudo, a expansão dos interesses privados do complexo médico, farmacêutico e hospitalar, em escala mundial. Nos anos 1960 já se detectava a firme expansão da chamada
‘indústria da saúde’13 – uma lamentável aliança de palavras e conceitos moralmente contraditórios –, que representou e representa, por certo, um dos maiores desafios para o desempenho de uma enfermagem comprometida com os ideais das primeiras gerações e de suas mestras.
Já foram abordadas as personagens centrais que, a duras penas, construíram o cenário para a nova profissão, tanto no âmbito de seus países como no plano internacional, ainda nos primeiros decénios do século XX. Enormes desafios – culturais, políticos e económicos – se colocavam para as protagonistas dos episódios: rituais de crescimento e legitimação profissional (Collins, 2004). Não se tratava apenas do estabelecimento de uma nova identidade – o que significava a superação de uma imagem anterior, que dificilmente se poderia denominar ‘profissional’; tratava-se também do enfrentamento, por parte de bravas militantes, da discriminação racial e de género no seio da profissão. A despeito dos esforços de suas principais lideranças, de programas de governo e de organizações voluntárias, a atmosfera social na qual
emergia a profissão era pesadamente marcada pelo preconceito, ainda que não necessariamente
pela discriminação. A questão racial era um tema sensível em todo o mundo, e nenhum historiador poderia esperar ou sugerir, de boa-fé, que as doutrinas eugênicas – mais fortes e perniciosas na Europa do que em qualquer outra parte – pudessem poupar até mesmo os pensadores e militantes socialistas do início do século XX. Uma ‘guerreira’ do porte de Lavinia Dock tampouco foi poupada: em seus escritos, deixa entrever o preconceito contra as jovens enfermeiras negras, ao preconizar que fossem treinadas e guiadas por suas colegas nascidas de “uma raça mais experiente” (citado em Williamson, 2000, p.VI).
Essa atmosfera carregada afetava também os programas patrocinados pela Fundação Rockefeller. Em 1923 os planos da Junta Internacional de Saúde, de enviar uma colored para o corpo docente da novíssima Escola Anna Nery, foram cancelados diante do temor de que uma ‘mestiça’ não fosse bem recebida pelas elites da então capital federal.14 Na Índia o sistema de castas adicionava ao peso da discriminação entre segmentos sociais uma forte desconsideração por papéis desempenhados por mulheres. As consultoras internacionais que preparavam a formação da nova enfermeira, na Índia recém-independente, não se furtavam ao olhar condescendente sobre a constituição ‘frágil’ da mulher indiana e, desse modo, acabavam por reforçar a dominação masculina no espaço hospitalar (Healey, 2006). No Japão, o papel submisso das mulheres não diferia muito das condições no subcontinente indiano. Nesse caso o militarismo patriótico e a ideologia conservadora do Comitê Nacional da Cruz Vermelha, que controlava o treinamento das enfermeiras no país, operavam como um cordão de proteção contra o feminismo e a busca de autonomia profissional, por parte das lideranças do ICN. Estas eram, com frequência  denominadas ‘socialistas perigosas’ pelas autoridades da Cruz Vermelha japonesa (Takahashi, 2002, p.94).
O facto incontestável foi a existência de obstáculos de toda ordem – culturais, políticos e económicos – à abertura de novos programas de formação educacional em muitas partes do mundo, colocando em xeque a difusão do profissionalismo em escala global, defendida e vislumbrada pelos consultores da Fundação Rockefeller para a área de enfermagem e pelos técnicos da OMS. A questão que se coloca para os historiadores contemporâneos pode ser assim resumida: até que ponto estruturas sociais brutalmente segmentadas – especialmente nas sociedades agrárias da Europa oriental, África, Ásia e América Latina – poderiam comportar, naquela época, um recrutamento de enfermeiras genuinamente democrático, sob o ângulo  racial e de género? Em muitos países, lideranças da enfermagem e dirigentes educacionais postulavam a criação de pequenas ‘elites de poder’ no seio da profissão, como uma estratégia válida para a conquista de um território de saber ‘legítimo’ aos olhos das classes sociais mais altas, de tal modo a atrair jovens estudantes promissoras. Tratava-se, em outras palavras, de gerar profissionais com auto-estima pessoal, bom lastro cognitivo e formação técnica exemplar, em lugar de figuras vassalas e subalternas à administração dos ‘doutores’. Inúmeras pré condições se impunham para a abertura de novas oportunidades no reduzido mercado das áreas privada e pública, hospitalar ou de saúde pública, que ao mesmo tempo fossem uma fonte de auto estima para a nova profissional. O preenchimento de tais condições significaria, no longo prazo, estabelecer um grau razoável de autonomia, superando a subserviência diante da hierarquia médica, sobretudo nos hospitais. Fossem ou não antigas e profundas as raízes da formação profissional no serviço hospitalar ou comunitário, o ‘ethos burocrático’, que privilegiava os atributos da disciplina, eficiência, ordem e hierarquia, remetia às dimensões do chamado ideal sanitário, mencionado no presente ensaio. Ou por outra, havia uma tensão latente entre dois clusters ou conjuntos de valores, um de ordem burocrática, no sentido weberiano, e outro que se confundia com a ‘questão sanitária’ desde finais do século XIX. Por outro lado, durante esse período de intensa organização burocrática da profissão, no sentido sociológico, aqueles atributos e condutas conviveram de modo tenso com uma ética de profissionalismo que enfatizava o sentido do ‘chamado’, ou da concepção internalizada do dever – também na acepção weberiana do termo (Eisenstadt, 1968, p.28-42).16 Isso significa dizer, em última análise, que a profissão da enfermagem, talvez melhor do que nenhuma outra, prenuncia as tensões propostas pelo próprio pensamento de Max Weber entre as dimensões existencial e profissional (Lazarte, 2005, p.30). O sociólogo Rolando Lazarte capta essa tensa dualidade ao falar de Weber e dos pólos da paixão ou vocação, de um lado, e do quehacer profissional ou científico, de outro lado. Na verdade – assinala o autor –, o proceder da ciência é profundamente estranho a qualquer concepção de frieza ou distanciamento pessoal. Coloca-se aqui, desse modo, a dualidade constitutiva da própria práxis da enfermagem.
Nos dias de hoje essas questões afloram com frequência na América Latina e, por certo, no Brasil, tendo o corporativismo e os interesses materiais da categoria – luta por melhores salários, conflitos pelo poder e litígios nos conselhos profissionais, adesão compulsória aos sindicatos e conselhos, entre outros interesses – frequentemente jogados para segundo plano os ideais solidários e altruístas que, sob a inspiração de Florence e de tantas militantes aqui nomeadas, constituíram a reserva moral e a legitimidade política da enfermagem moderna. Anna-Emilie Hamilton conhecia como poucas esse dilema da profissão, quando escreveu: “Para tornar-se uma carreira, a enfermagem deve, não obstante, permanecer uma vocação” (citado em Schultheiss, 2001, p.92; ver também Paicheler, Sept. 1995). Outro desafio se coloca para as
lideranças atuais da profissão, que devem enfrentar as tensões geradas pelas clivagens internas entre as enfermeiras diplomadas e as auxiliares, escapando da sedução dos rituais de dominação de status que historicamente marcaram as relações entre o poder médico e a ‘enfermagem subalterna’. Fugir a tal desafio implicaria, por certo, no surgimento de identidades deterioradas e solidariedades entre as várias camadas da profissão (particularmente nas camadas inferiores da hierarquia), fazendo lembrar a esse respeito os escritos preciosos, ou advertências, do sociólogo Erving Goffman (2003). Esforços importantes têm sido feitos para a superação dos problemas envolvidos na hierarquia, inclusive pelo exame dos aspectos psico pedagógicos
da profissionalização das auxiliares e técnicas de enfermagem, com o apoio de organizações internacionais como a Fundação Kellogg e as unidades de desenvolvimento de recursos humanos e políticas da Organização Pan-americana da Saúde (Opas), com atuação em toda a América Latina (Malvárez, Heredia, 2005). Um terceiro desafio envolve particularmente a enfermagem latino-americana, para a qual se impõe a superação de barreiras linguísticas com o inglês e o francês, responsáveis pela redução nos fluxos de interação transacionais. A Federação Pan-americana de Profissionais de Enfermagem (FEPPEn), criada oficialmente em 1970, ainda que tenha fortalecido os laços entre as coletividades profissionais de fala portuguesa e espanhola, parece ter tido o efeito não-antecipado de enfraquecer o relacionamento político e intelectual com os demais países membros do ICN. No plano intelectual, é surpreendente e lamentável o pouco diálogo da literatura histórica latino-americana sobre a enfermagem com a produção, de excelente
qualidade, da historiografia norte-americana, inglesa, canadense e francesa.17 A análise histórico comparada, um dos pontos fortes da produção norte-americana, francesa e inglesa (a exemplo de Davies, 1983; Feroni, Kober, Sept. 1995; Rafferty, 1995; e Godden, Helmstadter, 2004), é justamente um dos pontos fracos da produção latino-americana. A forte militância política e intelectual da enfermagem latino-americana parece desconsiderar, presentemente, que a política ‘radical’ das lideranças internacionais teve seu início nos grandes encontros do Conselho Internacional das Enfermeiras, como o que ocorreu em Copenhague em 1922, e na inspiração feminista e socialista de suas propostas de organização, desde aqueles primeiros tempos (Rafferty, 1995, p.277, 281). O intercâmbio intercontinental, enfraquecido em razão de barreiras corporativas e linguísticas, pode vir a comprometer os ideais francamente universalistas, concebidos por Ethel Bedford Fenwick na Inglaterra, Anna-Emilie Hamilton na França, ou Mary Adelaide Nutting e Lavinia L. Dock na América do Norte, há cerca de um século. No fundo, é a proposta de ação universalista e solidária que está em jogo, de modo a poder de facto assegurar que a enfermagem possa “transpor todos os limites e violar todas as fronteiras”, lembrando a epígrafe inspirada e inspiradora de Hannah Arendt que abre este artigo.


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